Nossas meninas e "As Meninas" de Lygia
Junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto acima de 22 semanas a homicídio. Adoraria criar meninas para o mundo, mas no atual cenário em que vivemos, tenho tentado cultivar flores no meu coração antes que sua terra fértil seque.
Murchando, carregando no peito esse peso, leio os portais e a cada scrolling um golpe. Um projeto que não apenas negligencia o combate à cultura do estupro, como também criminaliza e hiperencarcera meninas e mulheres, impondo-lhes o dobro da pena em comparação com o estuprador.
Tem um nó na minha garganta. Nunca sofri abuso sexual, mas imagino como é olhar para a própria vida e enxergar um abismo, uma espiral que conduz os pensamentos até um lugar silencioso, vazio, obscuro. Engravidar, sem desejar, de alguém que violou todas as camadas, desonrou corpo, mente e coração.
Como se não bastasse o tormento de uma alma que carregará para sempre a marca do atravessamento de seu espírito, como é possível ser considerado crime a tentativa de cicatrizar uma feriada eterna? Não cicatrizará, lá estará para lembrá-las a cada manhã, a cada instante de existência, entre sorrisos e lágrimas, em carne viva por toda a vida. Estamos assistindo nossas meninas sendo sentenciadas à barbárie.
Jamais geraria uma vida fruto de um estupro. Que eu me lembre, nunca fui estuprada. Que eu me lembre. Uma mulher carrega consigo memórias veladas, vestígios de amor e dor, inúmeras possibilidades de florescer e murchar. Ser humana é investigar, a todo tempo, vestígios do absurdo. As mãos gentis do tempo acarinham os contornos da agonia, nos presenteando com a amnésia.
Talvez haja um Sol para cada menina. Que as liberte das sombras onde se aninham. Nossas meninas são nossa responsabilidade. Todas merecem caminhar em paz pela trilha do esquecimento, para longe do eco do sofrimento. Nenhuma menina merece encontrar morada nessa caverna e, tentar, ao custo do peso do mundo inteiro nas costas, criar vida a partir de incontáveis espinhos cravados na alma.
Para que mulheres contem histórias brilhantes, é preciso protegê-las desde o nascimento. O carinho é nossa responsabilidade. O que espero desse texto é que ele me acalente e também a todas as meninas e mulheres que o consumam. Sobre escolher o que se consome, decidi não me machucar mais estando no Instagram, e essa escolha me leva a pensar no tormento da não-escolha.
Para as nossas meninas, desejo o espírito de Lygia Fagundes Telles. Desejo que conheçam a primeira escritora brasileira a concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura. Na adolescência, que tenham acesso a bibliotecas, que possam passar horas lendo e sendo absorvidas pelas histórias que outras mulheres escreveram, como "Antes do Baile Verde", "Ciranda de Pedra", "Verão no Aquário", "As Meninas" de Lygia.
Para as nossas meninas, desejo estilo. O próprio estilo de escrever, de vestir, de se expressar. Ousadia, humor, sorrisos. Que delas, a vida não arranque mais do que sorrisos. Que se sintam confusas entre a primeira e terceira pessoas num livro difícil de ler, mas jamais, confusas sobre como dar um banho num bebê, sobre como fazê-lo dormir nas madrugadas que antecedem às manhãs na escola.
Uma das meninas de Lygia sofreu abuso, assim como sua mãe. Seu nome, Ana. Eu, que também sou Ana, carrego comigo outras feridas abertas, mas não essa. Já é o bastante. Se a vida não é justa, que pelo menos, seja um pouco mais generosa. Nem Ana de Lygia, nem eu, nem outras. Se somos nós que carregamos a vida, que possamos suportar o peso de tudo que não seja um ser humano concebido de um jeito tão triste.
Estamos aqui, todas, nesse imenso jardim. Um jardim que deveria florescer, onde deveríamos observar flores que nascem e morrem, e dessa observação, elaborar o processo, torná-lo parte de uma eterna experimentação, depois, transformá-lo em arte. Para muitas de nós, no mesmo jardim, é negado o direito da observação das flores mais belas. Nesse mesmo jardim, há sementes que não devemos permitir brotar, elas devem permanecer adormecidas, porque nenhuma terra fértil é capaz de suportá-las.