Aprendendo sobre próprio amor com quem soube fazer
Aos 62 anos, Marina Lima colocou no mundo a letra de “É Sexy, É Gostoso”, um indiezinho delícia que faz parte do disco “Novas Famílias” (2018). “É sexy, é gostoso. É lindo esse seu momento. Onde o sexy e o nexo não precisam ter explicação”, um jeito de dizer ao ser amado que, não há o que tirar, nem por. As pessoas são como são, é uma delícia saboreá-las. Para maturar um pouco a ideia, trago aqui mais um trecho que conversa com a minha proposta nesse texto: “Vem, eu vou lhe roubar. Mas nunca desconecte do seu coração”. Um pedido, com apetite, pela preservação da autenticidade do indivíduo que se ama.
Quando falo sobre amor e paixão, falo de força. Isso porque amo e sou apaixonada, e sei que até para amar é preciso disciplina. Especialmente, na prática diária do autoamor. O vermelho sangue-coração que é capa de Marina, está presente também na instalação de Tunga no Inhotim, “True Rouge” (1997). O trabalho dá vazão a questões significativas na obra do artista: ciclos vitais, alquimia, presença dos corpos. Relaciono aqui os ciclos como a própria maturação e também com o autoamor. Penso sobre a minha percepção em relação ao que revela o tempo numa terça-feira às 16h em relação ao que há por trás da alquimia do sexo, da presença dos corpos. Analiso a possibilidade de traduzir as minhas próprias emoções em tons de vermelho, e a cor como potencializadora dos sentimentos.
O que lembra um laboratório no trabalho de Tunga, com recipientes suspensos em posições irregulares, traz o vidro e o líquido como figurantes, e a cor como protagonista. O que é frágil e o que é efêmero, o material com o que escorre, é palco para a vibração do vermelho inabalável, é ela que brilha. O derramamento do líquido depende da inclinação, traço um paralelo com os nossos dias, e entendo que por aqui tudo depende de quanto e como nos inclinamos. Entre as nossas diferenças na forma como nos doamos, seja para o outro, seja para nós mesmos, algo em comum: o vermelho. Há fragilidade, há liquidez, mas há o mistério sem porquês da possibilidade de presença do amor em tudo. Enquanto vivos, estamos unidos pela cor que corre em nossas veias e pelas chances de fazer amor, de se autoamar.
Muito ressoa esse vermelho todo com a chama do que é intrínseco aqui. No livro “Do Espiritual na Arte" (1910), Wassily Kandinsky, que iniciou seus estudos sobre arte aos 30, explora essa cor como chama que queima com emoção, que aquece a alma. Nas pinturas abstratas, acima de todos os sentimentos possíveis, é o vermelho que evoca o desejo. Me coloco como objeto do meu próprio estudo, motivada por esse desejo, e sigo focada nessa minha reflexão. Escrever publicamente é como sair do coma, e para sair de um coma é preciso força, a mesma que anda lado a lado com o que se derrama. “Às vezes as histórias estão verdes, e aí é preciso guardá-las na gaveta, como frutas”, disse a minha Lygia Fagundes Telles. Hoje, nada aqui é verde!
Compor um disco, uma música, fazer história. De cor, alma, sangue, coração. Beber da fonte do desejo, da inspiração. Assumir ser desejante, excitar, emocionar, ser capaz. Entre o que para mim é luz, que invade o peito e encanta, o trecho “Beleza são coisas acesas por dentro”, de “Lágrimas Negras” na voz de Gal Costa, composta por Nelson Jacobina e Jorge Mautner. Uma música que traz também essa camada de admiração do próprio amor nos primeiros versos: “Na frente do cortejo, o meu beijo. Muito forte como aço, meu abraço”. O “meu” beijo, “meu” abraço, e a confiança no valor do que é particular e único. Ponha a mão embaixo e espere cair, um pensamento de Lygia sobre a maturação, é o que está acontecendo por aqui. Como um caderno de recados dados e abstrações, carrego o meu texto nos braços como se fosse um filho, então, dê boas-vindas.
Costurando as palavras com essa linha vermelha invisível, te digo, o seu próprio amor é sexy, é gostoso, e é isso que eu acho. Para Bell Hooks, a aceitação radical e incondicional de nós mesmos é essencial para resistirmos às opressões. Para mim, submergir do pântano do julgamento a partir da leitura de escritoras mulheres, é como ganhar mais 50 anos de vida. Claro, ao custo de certo isolamento, introspecção, elaboração das coisas, aceitação e tempo. Desenho aqui uma nova forma de expressão diante de todos que amo, de todos que me odeiam, para a posteridade. Escolhi um retrato de Bell em sua melhor idade, porque me cansa encontrar por aí homenagens com o mesmo retrato de quando tinha seus 20 e poucos. Muitas pessoas odeiam as mulheres maduras, elas se escondem em bandos.
Parte delas, transparece o etarismo nos toques, nas dicas amigas sobre como deveríamos nos enxergar e nos posicionar como “mulheres maduras”. O que é uma mulher madura? Será que sangrar e molhar a calcinha de vermelho há tantos anos já não é o bastante? A todas as mulheres que compreendem a dor dos cistos, sofrem com endometriose, tiveram abortos espontâneos ou não, carregam dois ovários e um útero, deixo aqui meus sentimentos. A todas que se tornaram mulheres por assim se reconhecerem, ameaçadas pela transfobia, que correm todos os riscos de derramar sangue, meus sentimentos. Torço para que possamos furar nossas bolhas, amar e receber amor de quem não nos julgue por nossos corpos, nossos rostos, nossas roupas, nossas fotos, nosso bom humor, nossa euforia num dia feliz. De quem queira nos entender, mas principalmente, sentir.
Digo com frequência, entre risadinhas nos primeiros contatos com novas pessoas, que sou uma mulher brasileira de 36, e completo reforçando que isso é o bastante. Já que o próprio desejo é motivo de censura, a própria opinião, os próprios pontos de vistas, a própria história. Na inflexibilidade diante ao que fere a nossa existência, somos enxergadas como “difíceis”. Se nos tornamos artistas, é porque ficamos “loucas”. Claro, tudo depende, depende de muita coisa, pulemos aqui os detalhes dessa tragédia anunciada é que nascer mulher brasileira. Eu, Ana, não sou o tipo de pessoa que se ama à primeira vista, sabe? Paixão é diferente, vem como um trovão, descarga elétrica, como um raio, dá e passa. O amor não, aqui ele nasce com muitas doses de empatia e respeito, com o passar de muitos anos.
Borrarei de vermelho essas linhas e trarei aqui uma ferida aberta. Há um tempo, ouvi de uma pessoa “Como você quer terminar sua carreira?”, aos 34. Eu poderia tornar esse texto ainda mais dramático dando alguns detalhes polêmicos, mas tenho tentado segurar o tamanho do absurdo da vida para não chocar tanto as próximas gerações da minha família com as minhas palavras. Como poderia eu pensar em como terminaria a minha jornada profissional aos 34, se para todas as coisas que ainda tenho interesse em desenvolver necessito de pelo menos mais 50? Olho para a trajetória das minhas escritoras e cantoras preferidas, me sinto menos golpeada pela ignorância dos infiltrados nos bandos. A maturidade é atraente, pessoalmente, me conhecendo como ninguém, acho que me cai bem.
Um dia ou outro na indisposição, sei lá, uma ruga ou outra? Não mudou tanto assim do que era aos 20 e muitos. O que isso importa? Até tentei me viciar em skincare coreana como forma de autoamor, mas não rolou, o meu negócio é ter tempo para escrever. É o meu jeito e eu mereço consideração. Adoro um batom vermelho, então esfolio a boca com cuidado para garantir a maciez e o contorno impecável, aprendo muito com a Vanessa Rozan. Acho maravilhoso estar inteira e bem cuidada, digo, saudável. Na pele, vitamina C, um sérum, protetor solar, corretivo, para mim, está resolvido. Quem sabe algo mais elaborado daqui a algum tempo, com recomendação dermatológica, por enquanto, é o suficiente. Gosto de histórias, de todas, de todas mesmo. Talvez por isso, dedico mais tempo a elas, menos aos cuidados com o meu rosto.
Atualmente, me interessa descobrir mais sobre a alma de cada uma das mulheres que admiro e, para isso, tenho feito mergulhos profundos. Sinto que devo ler novamente “Tudo Sobre o Amor”, Bell Hooks, porque quando li, ainda era verde. Me espelhar em mulheres como Simone de Beauvoir, que publicou o seu primeiro livro aos 35, deixando como legado sua crença sobre o próprio amor como fonte essencial para independência e autenticidade. Esse texto que escrevo aqui hoje tem um pouco de amor, de paixão, e muita força, como já proclamei. Atravessei cada linha até aqui, colorindo de vermelho, sem desistir, essa nunca foi uma opção, jamais será. Nunca desconectada do coração, como ecoa Marina, sinto que há fogo aqui dentro, e haverá por muito tempo.